O pecado da Inveja

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A cultura humana está, desde a sua origem, assentada na violência. Para não nos alongarmos em demasia, vamos direto ao ponto: o assassinato de Abel pelo seu irmão Caim. Depois de breve introdução, diz o texto bíblico que “Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim pôs-se a cultivar o solo. Aconteceu, tempos depois, que Caim apresentou ao SENHOR frutos do solo como oferta. Abel, por sua vez, ofereceu os primeiros cordeirinhos e a gordura das ovelhas. E o SENHOR olhou para Abel e sua oferta, mas não deu atenção a Caim com sua oferta. Caim ficou irritado e com o rosto abatido. Então o SENHOR perguntou a Caim: ‘Por que andas irritado e com o rosto abatido? Não é verdade que, se fizeres o bem, andarás de cabeça erguida? E se fizeres o mal, não estará o pecado espreitando-te à porta? A ti vai seu desejo, mas tu deves dominá-lo’. Caim disse a seu irmão Abel: ‘Vamos ao campo!’ Mas, quando estavam no campo, Caim atirou-se sobre seu irmão Abel e o matou.” Depois, um pouco mais à frente, temos o desfecho desta história quando diz que “Caim afastou-se da presença do SENHOR e foi habitar na região de Nod, a leste de Éden. Caim uniu-se a sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Henoc. Caim construiu uma cidade e lhe deu o nome de seu filho, Henoc.” (Gn 4, 2-8; 16-17) O leitor me desculpe, faço sempre fartas citações das Sagradas Escrituras por se tratar de um texto assaz conhecido. Mas, continuemos a nossa reflexão.

É natural que sintamos, em maior ou menor grau, inveja do nosso próximo. Da bela casa que ele possui, do carro novo que ele comprou recentemente, do emprego, da roupa que ele veste, da mulher com quem ele namora ou se casou; sentimos uma pontinha de inveja até mesmo da felicidade estampada em seu rosto. Até aí não há nada de errado, patológico ou pecaminoso. Isso é humano, demasiadamente humano, dirão alguns. Moisés, a quem devemos o Decálogo, tinha, no entanto, plena consciência até onde a inveja pode nos levar, por isso nos adverte: “Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma do que lhe pertença” (Ex 20, 17).

René Girard, o renomado antropólogo e crítico literário francês já tantas vezes citado no decorrer destas reflexões, estrutura o seu pensamento tendo como base uma ideia que revolucionou as ciências humanas: o conceito do desejo mimético. Para o autor de Shakespeare: teatro da inveja, “para se manter a paz entre os homens, há que definir a proibição em função desta atroz constatação: o próximo é o modelo dos nossos desejos. É a isto que chamo o desejo mimético.” Ainda para Girard, “se o Decálogo consagra o seu último mandamento à proibição do desejo dos bens do próximo, é porque nele reconhece, lucidamente, o responsável pelas violências proibidas nos quatro mandamentos que o antecedem. Se deixássemos de desejar os bens do próximo”, diz ainda, “nunca nos tornaríamos culpados de assassínio, nem de adultério, nem de roubo, nem de falso testemunho. Se o décimo mandamento fosse respeitado, tornaria supérfluos os quatro que o precedem”, finaliza.

Não há como fugir ao desejo mimético. Todo o processo de hominização está ligado a esse desejo. Torno-me culturalmente humano à medida que convivo com outros humanos e os imito. Esse, dirá Girard, é um processo natural e intrínseco à condição humana. É através da mimese, ou imitação, que aprendo a falar, andar sobre os pés, comer sentado à mesa, usar roupas, fumar, beber, cantar, ler, escrever. Numa palavra: aprendo a ser gente! Ou seja, sem o Outro, estou perdido.

O problema reside, no entanto, quando o desejo mimético se transforma em inveja pura e simples. Aí saímos do campo do que nos é natural, para o campo do patológico. Moisés percebeu claramente esse tipo de patologia, ou de anomalia, no comportamento do povo judeu durante a caminhada para a terra de Canaã, como algo fulcral da própria condição humana. Senão, não haveria razão para o décimo Mandamento nem muito menos para os quatro anteriores.

Fica muito mais fácil compreender o violento mundo em que vivemos quando voltamos a nossa atenção para o desejo mimético. Mais fácil entender, também, esse mundo das celebridades. Um mundo vazio, mesquinho e doente, no qual a inveja e o desejo do sucesso sem esforço reinam absolutos. De um lado, temos notícias de “marias chuteiras” que escolhem o caminho fácil de engravidar de jogadores ricos e famosos para garantirem polpudas pensões; e, de outro, jogadores ricos e famosos que querem ser vistos, fotografados e desejados, por isso se cercam de mulheres bonitas e inescrupulosas, frequentam bailes funks, exibem armamentos pesados, se fazem acompanhar de foras da lei, mas, ainda assim, ganham salários astronômicos e por isso são imitados e invejados por um número infindável de fãs.

Inveja e violência surgem, portanto, como as duas faces da mesma moeda. De maneira que roubos, assaltos, assassinatos e demais manifestações de violência escondem, atrás de si, o intrínseco desejo que temos de imitar e invejar o nosso próximo.
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