ENSAIO EXTEMPORÂNEO SOBRE A FEIÚRA – I, por Tarzan Leão

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Uma constatação é evidente aos estudiosos da estética: durante toda a história, criou-se uma relação tão íntima entre fealdade e maldade, que hoje fica difícil dissociar uma da outra. Inclusive e, sobretudo, na iconografia religiosa, retratando Satanás sempre horrendo, em contraposição aos santos e santas, incrivelmente belos e harmoniosos. Esse ideal do homem “belo e bom”, (kalos kai agathos), e que acabou se impondo à cultura ocidental cristã, é fruto da clássica formulação dos gregos, que viam o mundo como harmonia (cosmos) ou, numa palavra, belo.

Desse modo, diz Márcio Seligmann-Silva, professor de Teoria Literária da Unicamp, “o belo é tido em altíssima conta e é visto como parte de um universo bom e harmônico. Na filosofia de Platão, a beleza serve para indicar e recordar o mundo das Idéias. Em Aristóteles, por sua vez, a beleza do corpo é vista como o fruto da adaptação a um fim.”

A definição do que vem a ser o belo – e, consequentemente, o feio – depende, quase sempre, de questões históricas e culturais. Mas há, todos hão de concordar, sobretudo hoje num mundo globalizado, certos padrões estéticos que são, eu diria, universais. De maneira que aquilo que consideramos belo aqui não difere muito do que pensam os europeus, por exemplo. Porém, nunca é demais lembrar, há sempre uma ideologia por trás de todo e qualquer conceito. E que eles não surgem, como querem nos fazer crer, do nada absoluto e que por isso não podem ser questionados.

A ideia de feiúra como antônimo de bom está mais arraigada na nossa cultura do que podemos imaginar. Não é raro as mães, diante de uma travessura de seu filho bebê, falarem em alto e bom som: não faça isso porque é feio; falar palavrão é feio, assim também como bater no irmãozinho, maltratar o animal de estimação, desobedecer ou praticar qualquer tipo de maldade. Assim, desce cedo vamos criando uma nítida relação entre feiúra e maldade de modo que, quando menos percebemos, agimos como se maldade e feiúra tivessem um mesmo e único significado. A confusão de significado entre valores morais e estéticos acaba sempre prejudicando a uns e favorecendo a outros. Os prejudicados, neste caso específico, somos nós, os feios.

Perceber-se feio numa sociedade onde reina a ditadura do belo não é nada animador. Fico imaginando o quanto isto pesa para os que escolhem a carreira de ator, lugar por excelência onde ser bonito é decisivo para uma carreira de sucesso fácil, especialmente na televisão. Nesse espaço/tempo, parafraseando Vinicius, os muito feios que me perdoem, mas beleza é fundamental. Só há bem pouco tempo os novelistas brasileiros, por exemplo, escalaram atrizes negras para protagonizarem as suas novelas. Isso porque o nosso padrão de beleza ainda está preso a padrões europeus ou estadunidenses e, na compreensão dos mass media, nós mestiços estamos longe de atingirmos tais estereótipos de beleza.

Mesmo dentro do universo religioso, onde deveria reinar outra natureza estética, não é diferente. Ano a ano novos padres novos aparecem, e, ao envelhecerem, são substituídos por outros rostos que em nada diferem das celebridades televisivas. Esses religiosos eletrônicos arrancam suspiros dos mais santos corações e são desejados pelas adolescentes que lotam os programas de auditórios nas tardes de domingo e que nada – os programas – têm de cristãos. Seus rostos angelicais cuidadosamente escolhidos são uma armadilha do desejo mimético para nos levar a comprar seus discos açucarados, bem ao gosto do pseudo Deus-Mercado.

Nesse universo descrito acima quase não há lugar para a fealdade, ainda que se tenha talento. Porque a feiúra surge e se firma dentro da cultura ocidental e capitalista, não somente como o oposto do belo, ou algo esteticamente desarmônico, mas, sobretudo, como algo identificado intrinsecamente à ideia daquilo que não é bom. Estabelece-se, dessa forma, a relação pecaminosa entre estética e moral, provocando confusão nas mentes incautas e despreparadas, e uma reação prazerosa naqueles que aproveitam da situação para dela tirar vantagens pessoais para si e seus protegidos.
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