Conta o primeiro livro de Reis (3, 1-15) que “em Gabaon, o SENHOR apareceu a Salomão, num sonho noturno, e lhe disse: ‘Pede o que desejas e eu to darei’.” Ora, qual de nós, diante de um sonho dessa natureza, não pediria poder e dinheiro? Isso porque, temos a ilusão, de que o dinheiro e o poder são fontes perenes de felicidade e satisfação. Salomão que, embora em tenra idade já não tivesse nada de tolo, disse: “Dá, pois, a teu servo, um coração obediente, capaz de governar teu povo e de discernir entre o bem e o mal. Do contrário, quem poderá governar este teu povo tão numeroso?” E este pedido de Salomão agradou ao SENHOR. Então, Deus disse a Salomão: “Já que pediste estes dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem riquezas, nem a morte de teus inimigos, mas sim sabedoria para praticar a justiça, vou satisfazer o teu pedido. Dou-te um coração sábio e inteligente, de modo que não houve teu igual antes de ti, nem haverá depois de ti. E dou-te também o que não pediste: as riquezas e a glória, de tal modo que não haverá teu igual entre os reis durante toda a tua vida.”
Parece simples, mas, levar uma vida de desprendimento não é nada fácil. Há alguns anos, quando o socialismo estava ruindo mundo a fora, Frei Betto escreveu uma série de artigos, depois reunidos no livro Fome de pão e de beleza, analisando as razões para a queda do dito “Socialismo real”. Para ele, a razão principal para a derrocada dos países socialistas consistiu, sobretudo, porque o sistema soube suprir muito bem a fome de pão do povo – havia comida, escola, moradia, transporte coletivo, saúde pública e segurança para todos –, porém, negligenciou a fome de beleza, ou seja, essa centelha que existe dentro de cada um de nós e que nos faz querer sempre mais. Numa palavra, o socialismo tentou suprimir o “desejo”. Penso que a questão do Ter está muito mais ligada ao desejo mimético do que possamos imaginar. A Lei mosaica já previra a armadilha do desejo ao nos prevenir que não devemos cobiçar a casa do próximo. Nem cobiçar a mulher do próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma do que lhe pertença (Ex 20, 17). E mais: o problema da violência está, em sua essência, também umbilicalmente ligado ao desejo. Essa questão já fora fartamente analisada em artigos anteriores e graças, justiça seja feita, às descobertas de René Girard no campo da antropologia cultural.
Todos – ou quase todos – querem ter casa, carro, roupa, utensílios domésticos, aparelhos eletrônicos, prestígio e dinheiro; muito dinheiro. E não há, muitos hão de concordar, mal algum em querer o melhor para si, isso faz parte da condição humana. No entanto, perguntado sobre o que queria para si, Salomão não pediu dinheiro, poder ou saúde, mas tão-somente sabedoria, ou seja, conhecimento. E o Eterno o dotou de sabedoria. Porque o Senhor, melhor do que ninguém, sabe que sob qualquer circunstância, o Ser se sobrepõe ao Ter. A verdade é uma só: a maioria das pessoas é consumista e muitos, à primeira vista, não enxergam o Ser. Essa questão fica em segundo plano. Valorizamos muito mais o que enche os nossos olhos, ou seja, o belo aparente, o que o Outro tem, do que a beleza que habita para além da aparência.
Jesus de Nazaré tinha clara consciência do perigo que corremos quando depositamos a nossa confiança no dinheiro e, por isso mesmo nos adverte dizendo, “atenção! Guardai-vos de todo tipo de ganância, pois mesmo que se tenha muitas coisas, a vida não consiste na abundância de bens” (Luc 12, 15).
Evidentemente não estou aqui fazendo uma apologia da pobreza, nem muito menos defendendo que a aquisição de bens materiais seja sempre injusta ou condenada por Deus. O que está em questão é algo muito mais profundo: depositar nossa confiança nos bens materiais é pura idolatria, por isso mesmo condenada do princípio ao fim nas Sagradas Escrituras. Que antes de querer Ter o que quer que seja, devemos nos preocupar com o nosso Ser-no-mundo, cuidando muito mais da vida interior do que daquilo que nos cerca. A radicalidade do seguimento de Jesus Cristo é tanta neste aspecto que ele mesmo nos diz para não ficarmos ansiosos com o que comer ou beber. De modo que, para Ele, os pagãos deste mundo é que vivem procurando todas essas coisas, mas o Pai sabe que delas precisamos. Devemos buscar, sim, o seu Reino, e essas coisas nos serão dadas por acréscimo (citação livre de Luc 12, 1-58). Afinal, como diz Chico César numa de suas canções, “coisas são só coisas/ servem só pra tropeçar/ têm seu brilho no começo/ mas se viro pelo avesso/ são fardo pra carregar”.
O ser humano, inconscientemente ou propositalmente, afunda-se a cada momento numa busca incessante de prazer no material, no visível, no palpável, deixando à margem assuntos e conhecimentos acerca das emoções, sentimentos, anseios e renovação interior. O que falta? Responda a si mesmo(a), na sua intimidade.
Sem exceções, devemos todos fazer uma “visita” ao passado particular e único, para percebermos e formarmos opinião sobre o motivo de tantas mudanças no comportamento humano desde os nossos primórdios. Quem garante se não concluiremos que a essência pura e verdadeira da alma se perdeu no caminho de todos ou de quase todos, e por apenas um único e não nobre motivo: a ganância e a necessidade de ter…ter…ter…e ter mais… e mais… e mais…
Viver numa busca frenética apenas para ter isto ou ter aquilo esvazia a alma de emoções e sentimentos, uma vez que o ser humano é insaciável. Por isso, necessário se faz que os valores morais, éticos e religiosos se sobreponham a qualquer barreira que impeça o Ser de simplesmente “Ser”.
