A mulher como tutora no século XIX: Alguns casos de Paracatu

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Por: Carlos Lima (Arquivista*)

O papel de viúva enquanto tutora de seus filhos menores não poderia ser tão formal e criterioso quanto o fora no século XIX, de acordo com documentos relacionados ao assunto. Era imprescindível justificar-se perante o Juiz para tal encargo, além de abdicar-se de alguns direitos exclusivos às mulheres, para poder inclusive administrar os bens deixados por herança aos filhos.
Uma abordagem fundamentada em laboriosos manuscritos da Comarca de Paracatu traz detalhes relevantes sobre a temática, que para ser estudada impõe ao pesquisador a tarefa de vencer as “tortuosas” linhas compostas pela truncada escrita do período oitocentista.
Consta dos autos do inventário do Capitão Manoel Rodrigues Barbosa, que ele falecera por volta do ano de 1845 e que era possuidor, dentre outros bens, de terras na Fazenda Jardim e Taquaril, no Distrito do Rio Preto (atual Unaí). Deixara viúva a Sra. Joanna de Araújo Ferreira e herdeiros maiores e menores. Estes últimos (menores de 21 anos) ficariam sob a responsabilidade de um curador de órfãos devidamente nomeado, até que passassem à tutela da mãe (a viúva), desde que esta fosse habilitada para tal pelo Juiz dos órfãos, conforme previa a lei (Art. 2º § 4º Parte 6ª da Lei de 22 de Setembro de 1828).
Procede-se então ao pedido de justificação de tutela pela interessada na seguinte forma: “E por que os ditos orfaons são da qualidade d’aqueles que se não deve por à soldados, e a suplicante quer se habilitar, e encarregar da tutela dos mesmos por isso requer a V. Sa. se sirva admiti-la a justificar citando o conteúdo do seguinte” (fl. 2) […].
À fl. 8 verso dos respectivos autos, a viúva Joanna de Araújo Ferreira é notificada pelo advogado e curador João de Pina Vasconcelos de que para a necessária habilitação dela como tutora dos seus 6 filhos menores “é mister = 1º renunciar o benefício dos Senatos Consultos Veleiano [1], e assim todos os mais direitos, e privilégios introduzidos em favor das mulheres – 2º Quando não renunciar também o segundo casamento, deve prometer que antes de se recasar requererá a este  Juízo para nomear novo tutor aos orfaons – 3º Finalmente deve prestar fiança segura, e abonada as quotas dos seis orfaons cuja tutela pede, não devendo a fiança ser menor ou inferior a 1.500$000 reis pelo menos, declarando-se isto mesmo ao fiador.”
Atendidas às exigências, tem-se à folha de nº 11v a seguinte sentença proferida pelo Meritíssimo Terceiro Substituto de Juiz Municipal Órfãos Joaquim Pimentel Barbosa: “visto o depoimento das testemunhas […], que todas depõem em prol da justificante, isto he, de sua capacidade, idoneidade [SÍMBOLO], e por conseguinte a declaro por habilitada para servir de tutora de seus filhos, huma vez que tem cumprido com o requerido pelo curador, para o que interponho minha authoridade e Judicial Direito[…].
Em petição datada de 24 de setembro de 1861, constante do acervo disponível para consulta no Arquivo Público Municipal de Paracatu, a viúva Maria Anacleta da Cunha requer ao competente Juízo dos Órfãos a justificação para tutoria dos menores seus filhos assim como dos bens de sua meiação, em decorrência do falecimento de seu marido João Espiridião da Cunha.
As formalidades apontavam para a exigência do depoimento de quatro testemunhas em favor da requerente. No termo de juntada da documentação lê-se o seguinte testemunho: “que a justificante Maria Anacleta da Cunha tem a necessária idoneidade e preciso discernimento para ser tutora dos menores seus filhos[…] pela regular conduta da mesma julga ter Ella o necessário discernimento para bem reger cem[sic] críptica [sic] os bens de seus filhos”, afirmava o Cônego José de Moura Barbosa.
No caso acima, as testemunhas também tinham de depor sobre o fiador dos bens dos menores, como se verifica no relato do Dr. Bernardo de Mello Franco, que diz: “Felix Simões da Cunha apresentado para fiador da justificante tem garantia não só em si como por bens móveis e de raiz para a fiança aos bens dos menores tutelados”.
A conclusão dos autos viria  em 14 de dezembro de 1861 pelo Meritíssimo Sr. Juiz dos Órfãos Coronel João Chisostomo Marques de Oliveira, da seguinte forma: “ Hei por justificado o deduzido na petição a folha 2 e a justificante habilitada por tutelar às pessoas e bens dos orphãos [sic] seos filhos sob a fiança oferecida; cuja administração lhe será confiada, depois de feitos e assignados os competentes termos “.
Outra petição datada de 30 de junho de 1877 contém o seguinte teor: “Diz Carolina Isidora de Tollêdo, viúva cabeça de cazal do finado Joaquim Gonsalves de Noronha, que pretendendo a tutela dos menores seus filhos, quer justificar perante V.S. que tem a idoneidade para esse encargo […]”. Tal idoneidade a que se refere o documento só seria sentenciada de forma favorável à parte requerente se fossem rigorosamente preenchidos os seguintes pré-requesitos:
“1º – Que He honesta de bons costumes e moralidade; 2º – Que He econômica e de boa discripção para reger seus bens, e quaisquer outros que sejão postos sob sua guarda e administração; 3º – Que assim, não só sabe conservar os bens sob sua administração como fazer produzir aqueles que são propios[sic] de produção, zelando-os e administrando-os; 4º – Que, igoalmente [sic] como mãe estremoza de seus filhos, tem a exigida capacidade para dirigir a educação delles; 5º  – Finalmente, que em tais termos He a justificante a compettente para tutela dos menores seus filhos, portanto.”
O termo de obrigações e renúncia existente às folhas de nºs 8 e 8 verso denotam, conforme a petição em análise, as competências e também as sujeições a que as viúvas estavam implicadas quanto à obtenção da tutela.  O excerto reflete muito bem isto da seguinte forma: “ella se obrigará a tratá-los, educá-los, alimentando-os às custas dos rendimentos de suas legítimas, e a sua própria custa quando estes não cheguem, e deles dar contas em todo e qualquer tempo pelo que se obrigará sua pessoa e bens, desistindo para esse fim de todos os privilégios e direitos introduzidos em favor das mulheres, especialmente os da lei de Veleiano”, ou seja, o benefício segundo o qual “as mulheres não podiam fiar, nem obrigar-se por outra pessoa: seriam relevadas de tal obrigação” (CARMIGNANI, [20–?]).
O direito à tutela dos filhos menores e dos bens da meiação, no século XIX, era sem dúvida alguma, objeto de apreciação jurídica e custava à parte interessada, ou seja, à viúva, grande esforço pessoal, boa reputação e a abdicação de direitos, para que resultasse na devida habilitação para o cargo de tutora.

(*) Carlos Lima é graduado em Arquivologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBa), é Pós-Graduado em Oracle, Java e Gerência de Projeto e é personalorganizer. Elaborou este artigo a partir de suas pesquisas nos fundos documentais do Arquivo Público de Paracatu – MG.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei de 22 de setembro de 1828. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38218-22-setembro-1828-566210-publicacaooriginal-89826-pl.html. Acesso em: 27 Set. 2020
CARMIGNANI, Maria Cristina. Parte especial: A condição jurídica da mulher. 2p. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5324019/mod_resource/content/1/Roteiro%20de%20aula.pdf>. Acesso em: 24 Set. 2020.
FÓRUM DA COMARCA DE PARACATU. Inventário de Manoel Rodrigues Barbosa. 16 mar. 1845. 68fls.
FÓRUM DA COMARCA DE PARACATU. Inventário de João Esperidião da Cunha. 24 set. 1861. 63fls.
FÓRUM DA COMARCA DE PARACATU. Justificação de tutela de Carolina Izidora de Toledo. 30 jun. 1877. 11fls.
PEROSA , JULIA BALBINOTTI. “Incapazes de falar por si”: As mulheres no direito brasileiro do século XIX. Florianópolis: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2017.  Disponível em: https://bgmamigo.paginas.ufsc.br/files/2011/02/TCC-Julia-Balbinotti-Perosa.pdf . Acesso em: 24 set. 2020
[1] Do benefício do Senatus consulto Velleianus, introduzido em favor das mulheres que ficam por fiadoras de outrem. Por direito é ordenado havendo respeito à fraqueza do entender das mulheres, que não pudessem fiar, nem obrigar-se por outra pessoa alguma, e em caso que fizessem, fossem relevadas da tal obrigação por um remédio chamado Direito Velleianus; o qual foi especialmente introduzido em seu favor, por não serem danificados obrigando-se pelos feitos alheios, que elas não pertencessem. E posto que assim geralmente fosse estabelecido em todas as obrigações, que por outrem fizessem, foram, porém, excetuados certos casos, em que fiando elas outrem, ou obrigando-se por ele, ainda que seja cousa que elas não pertençam, não gozarão do dito benefício do Velleianus. (ARQUIVO HISTÓRICO DE LAGUNA apud PEROSA, 2017, p. 35).

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