O século XX foi farto de ideias absurdas. Porém, a mais absurda de todas foi o conceito de raça pura ou superior desenvolvido pelo nazi-fascismo. Hitler, com sua boçalidade, intuiu que a raça ariana era pura e superior. Mas, sabemos nós, que tolice! A própria ideia, vê-se logo, só pode ser fruto de uma mente desequilibrada.
Durante anos a antropologia desenvolveu e divulgou o conceito de homo sapiens sapiens. De acordo com essa ideia, compreendia-se o ser humano como alguém dotado de razão sendo, por isso mesmo, alguém que agia sempre, ou quase sempre, movido pela mais pura racionalidade. Essa ideia, no entanto, mostrou-se insuficiente para explicar o ser humano. Hoje sabemos que, além de sapiens, somos, também, demens. Assim, alterou-se a fórmula para homo sapiens demens. E penso novamente em Hitler, na sua ideia maluca quanto à existência de uma raça pura, forte, vigorosa, muito acima de outras raças. E como foi fácil para ele vender essa ideia para uma Alemanha humilhada, que tinha saído arrasada da I Grande Guerra. Mais fácil ainda foi, uma vez levada toda a Nação a desejar o que o Führer desejava, encontrar um bode expiatório, e nele jogar todas as frustrações do povo alemão. Hitler compreendeu como ninguém esse jogo do desejo mimético, e o manipulou magistralmente. Sabia também que, para criar o seu super-homem, era necessário inventar uma vítima expiatória, alguém no qual recaísse toda a culpa dos males pelos quais passava a Alemanha do entre guerras, e ninguém melhor do que o povo judeu para se prestar a esse papel. Os mesmos judeus acusados falsamente de tantos crimes durante a Idade Média. Depois disso, foi fácil promover o holocausto, foi até tranquilo conseguir o apoio das massas hipnotizadas para que ele exterminasse da face da terra mais de seis milhões de judeus.
Somos seres doentes, homo sapiens demens. A demência é a nossa marca mais forte, e a sociedade, no seu conjunto, está enferma. É inadmissível que em pleno século XXI ainda haja fome no mundo. Gastam-se bilhões de dólares em armamentos de guerra enquanto o mundo padece sem alimento. O mundo dos pobres, dos desvalidos. A África sangra. A América Latina chora. Numa sociedade dividida em classes sociais, é sintomática a preocupação dos governos com o crescente número de pessoas obesas. Isso ocorre porque o que sobra na mesa de uns, falta na barriga de milhões. E passamos ao largo de todos esses problemas, como se tudo fosse normal. É que a maioria está mais preocupada em consumir, consumir e consumir. Quer saber quando sai o novo Ipod, se o mais recente lançamento da Apple já está disponível no mercado.
Quando percebida, a demência humana pode ser um fator positivo em nossa vida. Necessitamos nos precaver das nossas limitações. Não somos deuses, homens é que somos. E isso faz uma grande diferença. Quem expressou muito bem esse conceito foi Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, quando diz: “O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.” Para Rosa, é nesse desafinar, é nessa demência, que reside a singularidade humana. E ele não está errado em pensar assim. Somos seres frágeis, cheios de defeitos, de patologias. E não há como escapar disso, ou a isso. Faz parte da condição humana. Aliás, é isso que nos torna plenamente humanos.
Os evangelhos revelaram como em nenhum outro texto as artimanhas do desejo mimético e a sempre frágil condição humana. É o próprio Cristo que, advertindo a Pedro, também nos adverte: “Não fostes capazes de ficar vigiando uma só hora comigo? Vigiai e orai, para não cairdes em tentação…”. E quando nos esquecemos disso – dessa natural propensão ao erro –, imaginamos que somos deuses, e exigimos perfeição e eficiência de nós e dos outros. De modo que, diante do não atendimento a essa expectativa, tendemos a ficar frustrados e infelizes.
É preciso entender que somos seres de paixões, frágeis e limitados, sejamos judeu ou grego, brasileiro ou inglês, branco ou negro, árabe ou japonês. E que, se temos uma tarefa a cumprir, essa tarefa é construir um mundo de tolerância e convivência pacífica para todos nós, passageiros dessa espaçonave, a Terra.
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