O que conta mesmo é que vivemos. E é bom viver. Sentir o hálito suave da brisa matinal em nosso rosto, contemplar, ainda que a olho nu, a imensidão do espaço sideral: planetas, estrelas, asteroides. Como é maravilhosa a vida, ainda que seja, como diria João Cabral, uma vida Severina. Ver e sentir o espetáculo da vida em nosso dia-a-dia é o que urge. Prestar atenção às coisas mínimas: à cotidianidade, ao sem-valor, enfim.
Dádiva ou fruto do acaso, o que há de concreto é o fato de existirmos. Descartes chegou a essa conclusão a partir do seu “Dubito, ergo cogito, ergo sum.” Noutras palavras, o que ele quis dizer é que posso duvidar de tudo, menos do fato de duvidar, e, se para exercer o exercício da dúvida preciso existir, a conclusão é simples: eu duvido, logo penso, logo existo. Assim, a dúvida é, por si só, o combustível de toda a ciência e de todo o conhecimento. Donde também pode-se concluir que a experiência empírica pouco ajuda para comprovar a nossa existência.
Houve um tempo em que a ideia da morte me apavorava. Lembro, ainda criança, de um colega de escola que morrera vítima de meningite. A imagem ainda está viva em minha memória, mesmo que tenham se passado cerca de quarenta anos: o caixãozinho azul, o rosto pálido, as mãos sobre o ventre, as unhas arroxeadas. À noite, em minha rede, a cada minuto olhava as minhas próprias unhas, aterrorizado que estava com a possibilidade da morte. Da minha morte. Um estranho pavor de retornar ao Nada que eu fora durante bilhões e bilhões de anos-luz.
Mais tarde, já frade dominicano, travei amizade com a Morte. Acompanhei, junto de outros confrades, os momentos finais de dois santos homens: frei Marcolino e frei Gil Gomes. Fecho os olhos e escuto nitidamente o canto gregoriano: “Salve Regina,/ Mater misericordiae,/ Vita dulcedo et spes nostra/ Salve.” Sim, nos dominicanos, se canta enquanto se morre. E se canta alegremente.
Parei de temer a morte desde essa época. Só quem passou por uma experiência de Morte será capaz de compreender o que São João da Cruz diz em seu poema “Coplas del alma que pena por ver a Dios”. Ei-lo: “Vivo sin vivir en mí/ y de tal manera espero/ que muero porque no muero.” E mais:“Esta vida que yo vivo/ es privación de vivir/ y assí es contino morir/ hasta que viva contigo./ Oye mi Dios lo que digo/que esta vida no la quiero/ que muero porque no muero.”
Todos riem quando digo que não quero vida longa durante essa curta passagem pelo paneta Terra. Quero apenas vida vivida. Sentida. Degustada. E não importa por quanto tempo. Nada de ficar para semente, amargando a solidão da minha velhice, tendo como atividade principal a participação em velórios para chorar a morte de amigos que se vão.
Às vezes sinto saudade do tempo em que eu não existia. De fato, se formos contar o nosso tempo de não-existência, chegaremos à conclusão que ele é bem maior do que essa curta passagem pela vida terreal. Ele é a soma de tudo o que existiu antes – o infinitamente inimaginável – ao que virá após a nossa morte biológica, creiamos ou não na ressurreição. De maneira que não há o que temer, nem muito menos com o que se preocupar. Ou retornaremos ao Nada que um dia fomos – como creem os ateus confessos – ou iremos desfrutar das maravilhas do Reino de Deus, como apregoam as religiões em suas mais diversas formas.
