O relato mais antigo da literatura judaico-cristã onde o bode expiatório aparece está no Levítico, 16. O texto diz: Aarão “receberá da comunidade dos israelitas dois bodes para o sacrifício pelo pecado e um carneiro para o holocausto. Depois de haver oferecido o novilho pelo sacrifício pelo seu próprio pecado e de ter feito o rito de expiação por si mesmo e pela sua casa, Aarão tomará os dois bodes e os colocará diante de Iahweh na entrada da Tenda da Reunião. Lançará a sorte sobre os dois bodes, atribuindo uma sorte a Iahweh e outra sobre Azazel. Aarão oferecerá o bode sobre o qual caiu a sorte 'De Iahweh' e fará com ele um sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte 'De Azazel', será colocado vivo diante de Iahweh, para se fazer com ele o rito de expiação…”
Os judeus, nos últimos dois mil anos principalmente, sempre aparecem como as vítimas por excelência de uma Europa em crise. “A Idade Média deixou-nos documentos de origem cristã que relatam violências coletivas durante a terrível peste negra em meados do século XV. As vítimas podem ser os estrangeiros, os doentes, em particular os leprosos, e muito particularmente, é claro, os judeus” (Girard: 2008). A sociedade vem agindo assim desde a fundação do mundo. Mas esse jogo, já advertimos, é sempre muito perigoso.
A esse rito fundador, observa Girard, a humanidade vai sempre recorrer em momentos de crise mimética, e completa que “definitivamente, pouco importa quem é a vítima, desde que haja uma vítima”.
Essa crise mimética à qual tanto me refiro surge sempre que a ordem social é quebrada, e que se impõe o desequilíbrio. É nessa hora que a comunidade procura um responsável pela crise, culpando-o por tudo. Já escrevi antes que a mitologia está repleta de casos dessa natureza. Também a História apresenta uma infinidade de fatos que corroboram a tese que defendemos. E, se fizermos uma leitura atenta das Sagradas Escrituras, veremos que o tempo todo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, os autores estão sempre preocupados em mostrar que em momentos cruciais, esse recurso sempre foi usado. A grande singularidade do texto bíblico nos diz René Girard, e que o contrapõe à mitologia, é que nas Escrituras Sagradas a vítima é sempre inocente. Édipo é, de fato, culpado pelos males que afligem Tebas. Porém, que mal fez Abel para ser assassinado por Caim? Ou José, para ser vendido pelos seus irmãos (Gn 37, 12-36)? Ou ainda que mal ele cometeu para ser lançado na prisão (Gn 39, 7-20)? E o texto bíblico é claro: José era inocente de todas as acusações que sofrera.
Toda esta nossa reflexão, iniciada com o artigo intitulado “Paracatu às vésperas de um linchamento”, e que teve o seu desenvolvimento, no sentido de aprofundar os conceitos de mimésis e de bode expiatório em “Opinião pública, mimésis e mitologia”, não tem outra intenção senão chamar a atenção da comunidade, sobretudo dos formadores de opinião, para os riscos que corremos se a discussão em torno do conflito Sérgio Dani–RPM/Kinross buscar encontrar um bode expiatório, no qual colocaremos toda a responsabilidade pelos problemas passados e vindouros que flagelam Paracatu. Se formos analisar a situação de perto, seguramente um e outro têm razão. É inegável que a mineradora em questão tem sido uma parceira importante para o desenvolvimento da cidade. Centenas de empregos, diretos e indiretos, são anualmente gerados sob a proteção da RPM/Kinross, de modo que é quase impossível imaginar a cidade sem a sua presença. Acostumamos-nos a ela. Há, ainda, os que são beneficiados, direta ou indiretamente, pela mineradora: imobiliárias, locadoras de veículos; associações, clubes de serviços, movimentos sociais, igrejas; imprensa. A própria Fundação Acangaú, criada por Sérgio Dani, fora beneficiada financeiramente pela empresa anos atrás. Porém isso não invalida, de per si, as acusações feitas pelo pesquisador.
Durante muitos anos o homem usou os recursos naturais como se os mesmos fossem para sempre infinitos, renováveis e inesgotáveis. Mas esse uso desenfreado, no entanto, se intensificou mais e mais a partir da Revolução Industrial no século XVIII, com a expansão do capitalismo. A ganância por dinheiro tem levado a humanidade a colocar em risco a própria existência da espécie, devido ao manejo desregrado dos recursos do Planeta. Sabe-se hoje, claramente, que o clima da Terra está passando por sérias modificações que, se não cuidarmos a tempo, nos próximos cem anos colocará em risco a existência de muitas espécies fundamentais para a cadeia alimentar. A camada de ozônio, “capa” de gás que envolve a Terra e a protege de várias radiações, sendo que a mais nociva delas, a radiação ultravioleta, é a principal causadora de câncer de pele, com o desenvolvimento industrial, passaram a ser utilizados produtos que emitem clorofluorcarbono, um gás que ao atingir a camada de ozônio destrói as moléculas que a formam (O3), causando assim a destruição dessa camada da atmosfera. Sem essa camada, a incidência de raios ultravioletas nocivos à Terra fica sensivelmente maior, aumentando as incidências de câncer. Não bastasse isso, os recursos hídricos também estão ameaçados, sendo este, o ponto fulcral da polêmica Sérgio Dani–RPM/Kinross.
Sérgio Dani, em seu blog, também em jornais e panfletos, não tem poupado críticas à RPM/Kinross, acusando-a de contaminar nosso solo com arsênio. A sua luta, embora quixotesca, vem, aos poucos, sensibilizando alguns setores antes insensíveis à ação da mineradora. Conseguiu, por intermédio do vereador Romualdo Ulhoa (PDT), apresentar na Câmara de Vereadores o projeto de “Lei das Águas de Paracatu, que institui a bacia hidrográfica do Sistema Serra da Anta e toma outras providências de responsabilidade sócio-ambiental” e que, se aprovado, vai praticamente inviabilizar a ação da multinacional no morro do ouro, segundo notícia publicada num jornal local. Com isso, está comprando inimizades e antipatias jamais vistas. Manifestações de apoio à mineradora crescem na cidade.
Não há, no presente instante, um estudo isento e imparcial sobre a ação da RPM/Kinross, estudo esse que compreenda os benefícios e malefícios da multinacional. O que existe, até agora, é um discurso apaixonado, pra não dizer irado, de Sérgio Dani, duramente criticado por aqueles que, direta ou indiretamente, se beneficiam da empresa. Qualquer estudo, vale lembrar, deve compreender passado, presente e futuro de Paracatu, uma vez que o tempo não se encerra hoje, mas se prolonga geração após geração.
E, nunca é demais lembrar, partilhamos o mesmo espaço geográfico, razão pela qual, queiram ou não, somos corresponsáveis pela cidade onde vivemos e que, por isso mesmo, a escolha de um bode expiatório, seja ele Sérgio Dani ou RPM/Kinross, em nada contribuirá para o nosso bem-estar e das gerações vindouras. A advertência para o perigo que corremos ao escolhermos uma vítima expiatória é o próprio Girard quem nos faz, ao afirmar que “a humanidade inteira já se encontra confrontada a um dilema inelutável: é preciso que os homens se reconciliem para sempre sem intermediários sacrificiais ou que eles se resignem à extinção da humanidade num futuro próximo”.
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