Opinião pública, mimésis e mitologia

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O atual modelo de democracia representativa consagrou em nossa consciência a imagem de que a maioria tem sempre razão. Com isso, cresceu a ideia de que se deve agradar a todo custo a opinião pública, tendo como transfundo a falsa concepção de que “a voz do povo é a voz de Deus”. Porém, ainda que não resista a uma análise minimamente séria, este provérbio popular penetrou de maneira definitiva em nossas mentes, tornando-se por isso mesmo, um norteador para empresas e políticos, sempre prontos a investir fortunas em pesquisas de opinião na tentativa de descobrirem o que o povo pensa e deseja, afinal, dizem, o povo tem sempre razão.

O exemplo mais clássico de busca de ibope a qualquer custo quem nos dá é a televisão brasileira. Novelas alteram seus enredos, personagens que desagradam ao povo são misteriosamente assassinados, outros que tinham pouco espaço na sinopse original de repente podem ganhar espaço caso haja empatia com o público.

As pessoas às vezes nem sabem porque gostam de determinado estilo musical, porque vestem uma certa grife. No mundo da política não é diferente. Pelo discurso, já não é mais possível saber se determinado político é de direita ou de esquerda, se defende os interesses dos menos favorecidos ou do grande capital. De modo que o gosto médio vai se impondo em todas as esferas da sociedade, suplantando as diferenças. À primeira vista, isso parece bom. Porém nem tudo é aquilo que parece ser.

Foi para não desagradar a uma multidão enfurecida que Pilatos entregou Jesus de Nazaré à sanha dos seus acusadores (Mc 15, 15), embora tivesse certeza da sua inocência (Lc 23, 13-25). Muitas vezes necessário se faz romper com o consenso, divergir da maioria, apresentar uma nova ordem, despertar a sociedade adormecida. Poucos são aqueles que conseguem enxergar o que está por trás da chamada paz social, e, menos ainda, os que têm a ousadia de romper com essa pseudo paz. Se Jesus de Nazaré tivesse feito o jogo das classes dominantes do seu tempo, ou mesmo das multidões que o seguiam, muito provavelmente não teria sido assassinado numa cruz e estaria, ainda hoje, fazendo pregações na Faixa de Gaza ou em transmissões ao vivo pela CNN dando lições à humanidade e disputando espaço com esses pregadores eletrônicos da atualidade. Mas não. Quando uma vez ele é abordado pela multidão ensandecida que queria apedrejar uma mulher surpreendida em adultério (Jo 8, 2-11), ele resiste ao mimetismo, toma a defesa da mulher, opondo-se, cautelosamente, aos seus acusadores.

A maior descoberta intelectual que fiz nos últimos anos foi conhecer o pensamento de René Girard. Fui apresentado às ideias desse francês pelo teólogo inglês James Alison, uma das maiores autoridades no pensamento girardiano, em princípios da década de 1990. Porém, naquele momento, envolvido que estava com Freud e Marx, acabava relegando a segundo plano qualquer ideia que se mostrasse fora dos paradigmas que eu a custo havia construído. Por esse tempo tinha eu a clara convicção de que o desejo (Freud) e a luta de classes (Marx) estavam na origem da cultura. E como Girard propunha outra explicação, a minha reação não poderia ser diferente.

As bases do pensamento de Girard estão em seu livro A violência e o sagrado (Paz e Terra, São Paulo, 2008. 3ª edição), publicado em 1972. Antropólogo, pensador e crítico literário, René Girard nasceu em Avignon em 1923, e se formou em paleografia pela École Nationale des Chartes. Depois da Segunda Grande Guerra mudou-se para os EUA, onde desenvolveu sua carreira universitária, obtendo doutorado na Universidade de Indiana. Sua teoria discute exaustivamente os conceitos de mimésis e de bode expiatório, ambos estudados en passant no artigo anterior.

A melhor descrição da mimésis, aponta Girard, está no último mandamento do Decálogo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada do que lhe pertence” (Ex 20, 17) Para Girard, “vemos aqui, ao que tudo indica, o nascimento da ideia de desejo mimético, pois a lei busca enumerar os objetos que não devemos cobiçar. […] Essa é a proibição final do décimo mandamento. […] Este mandamento é uma proibição do desejo mimético”.

A advertência de Girard está ligada ao perigo que o mimetismo exerce sobre cada um de nós. Temos uma tendência natural à imitação. E essa propensão nos leva a crer que estamos certos em concordar com a maioria, em nos comportar como se comporta o comum dos mortais. Nesse tempo em que reina a música sertaneja, o funk, axé e outros estilos sazonais, quando perguntado de que música gosto fico até sem graça em dizer que escuto Elomar Figueira, Ceumar, Didi, Vital Farias e outros desconhecidos da música brasileira. O movimento mimético se dá mais ou menos assim: as rádios só tocam sertanejo porque o povo só gosta de sertanejo e o povo só gosta de sertanejo porque as rádios só tocam esse estilo. De maneira que chega num determinado momento que simplesmente imitamos, sem, contudo, nos darmos conta disso.

Girard retoma a ideia de um assassinato fundador da nossa cultura, mas vai muito alem de Freud e de Lévi-Strauss. Ao estudar os mitos e as Sagradas Escrituras, percebe que ambos contam a mesma história, muito embora estas se sobreponham àqueles. Tanto na mitologia quanto nas Sagradas Escrituras (Gn 4, 17), fica evidente que o nascimento da cultura está intimamente ligado à violência. Por isso, em determinados momentos de crise, a recorrência à violência apresenta-se como condição sine qua non para o restabelecimento do equilíbrio social. Hitler compreendeu muito bem esse processo ao imputar aos judeus toda a culpa pelas dificuldades financeiras pelas quais passava a Alemanha do entre-guerras. Porém o preço pago foi muito alem do que pode suportar nossa consciência cristã.

A população de Tebas, conta Sófocles (Édipo Rei), estava sendo devorada por uma esfinge. Jocasta, a rainha viúva, prometera desposar aquele que salvasse a cidade do flagelo. Édipo, que fugira de Corinto para que não se cumprisse o seu destino, ou seja, assassinar o pai e casar com a própria mãe, após resolver o enigma da esfinge e salvar Tebas desse flagelo, é proclamado rei e casa-se com a viúva de Laio, Jocasta, sua mãe verdadeira. Mas uma nova maldição cai sobre Tebas e que, só será afastada quando o assassino de Laio for descoberto e expulso da cidade. Édipo antes de ser expulso, não suportando a culpa do seu duplo crime – parricídio e incesto –, fura os próprios olhos e sai errante.
A mitologia está cheia de casos assim. Para restabelecer a ordem, geralmente o grupo, movido pela emoção e pela insanidade, escolhe um determinado membro para bode expiatório e nele descarregar toda a sua frustração, depois de responsabilizá-lo pelos males que o aflige.
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