Paracatu às vésperas de um linchamento

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Aos que já entraram em contato com o pensamento de René Girard (A violência e o sagrado; O bode expiatório; Coisas ocultas desde a fundação do mundo, dentre outros títulos), é, senão assustadora, pelo menos preocupante a conjuntura psicossociológica de Paracatu no momento em que vivemos. A cidade, que nos últimos quatro anos andava pacífica, de repente se viu às voltas com uma série de denúncias feitas contra a mineradora RPM, agora Kinross, pelo médico, doutor e pesquisador Sérgio Ulhoa Dani. Em virtude dessas denúncias, a cidade, de uma hora para outra, se viu dividida entre os que estão contra ou a favor da mineradora. E é justamente ai que reside o problema e a nossa inquietação.

O pensamento girardiano está fundamentado em alguns conceitos importantes para a compreensão da atual conjuntura, a saber, a mimésis e o bode expiatório. Para Girard, ninguém escapa à força devastadora da mimésis. A mimésis, para quem não está acostumado ao conceito, é, em termos simples, a tendência que temos à imitação. A expressão mimetismo vem do grego e foi profundamente estudada por Platão e Aristóteles que a diferenciaram da diegesis, que é a encenação feita pelos atores. Destarte, quando agimos, quase sempre o fazemos por imitação, ou seja, dentro desse movimento da mimésis. A esse movimento, nos lembra Girard, nem mesmo o apóstolo Pedro escapou (Lc 22, 54-62), sucumbindo ainda que advertido antes pelo próprio Cristo (Mt 26, 30-35).

O termo bode expiatório, amplamente usado por Girard, remonta à uma antiga tradição judaica (Lv, 16), quando um bode era escolhido para ser sacrificado como expiação pelos pecados de toda a comunidade. Hoje, ao usarmos a expressão bode expiatório queremos simplesmente nos referir a uma pessoa que é escolhida arbitrariamente para pagar pelos males que assolam uma determinada comunidade. Em muitas cidades gregas existia o pharmakon, que era alguem, muitas vezes um estrangeiro ou deficiente físico, escolhido para salvar a pólis em momento de grande crise. O pharmakon era levado à praça pública e executado, devolvendo à pólis a harmonia perdida. Já Édipo (Édipo Rei, Sófocles), ao ser responsabilizado pelos males que assolavam a cidade de Tebas é o bode expiatório por excelência da mitologia. O mesmo acontecerá a Jesus de Nazaré. Pilatos, embora tivesse certeza da sua inocência (Lc 23, 13-25), ainda assim entrega-o à morte uma vez que, político que era, tinha consciência de que essa era a única maneira para acalmar a multidão ávida por sangue, muito embora se tratasse do sangue de um justo. Para ficar mais claro o papel desse bode, Girard, citando Emmauel Lévinas nos lembra que “Se toda a gente se puser de acordo para condenar um acusado, libertem-no, pois deve estar inocente”, e recorda, agora ele próprio, que “a unanimidade nos grupos humanos raramente guarda a verdade; é, a maior parte das vezes, um fenômeno mimético tirânico.” Nelson Rodrigues, que não conhecia Lévinas nem muito menos Girard, numa de suas tiradas espetaculares disse que “toda unanimidade é burra.”
Isso posto creio que, agora, podemos retomar a análise do tema ao qual nos propomos analisar.

Sérgiodanistas de um lado e rpmistas de outro, cada um, a seu modo, tentam construir uma certa unanimidade. Essa busca de unanimidade, no entanto, está levando tensão e medo à população. As acusações feitas por Dani em seu blog, em jornais da cidade e em panfletos distribuídos à população dando conta que a cidade está sendo contaminada por arsênio e outros produtos químicos são sérias e preocupantes. Não bastasse isso, agora tramita na Câmara de Vereadores projeto de Lei de autoria do vereador Romualdo Ulhoa que, se transformado em lei, restringirá, em muito, a ação da mineradora na cidade. A RPM/Kinross, de sua parte, ameaça sair da cidade já em 2011 caso o projeto seja aprovado. Sem querer discutir o mérito, tanto Sérgio Dani quanto a RPM/Kinross fazem uso do apelo emocional para ganhar o apoio em massa da cidade desnorteada. E aqui retomo a questão do bode expiatório. Cada um, a seu modo, tenta transformar o outro no responsável por todas as mazelas presentes e vindouras à cidade de Paracatu, manipulando a comunidade a seu favor, criando um clima de medo na sociedade. Isso por que, ambos sabem, que perderá essa batalha aquele que for transformado em bode expiatório perante a opinião pública.

E nós, o povo, como ficamos? Para Girard nós, o povo, agimos por puro mimetismo. E ele tem razão. Quando estudamos a História humana isso fica sempre muito evidente. Tebas, que antes agradecera a Édipo por a ter livrado do monstro que a devorava, não pensa duas vezes em exigir o seu sacrifício para ver restabelecida a paz perdida. O mesmo acontece em Jerusalém. Dias antes de sua condenação Jesus é recebido na cidade qual um rei (Mt 21, 1-11). No entanto, quatro ou cinco dias depois a mesma multidão que o saudara condena-o à morte capital (Mt 27, 20-23), bastando para isso ser persuadida pelos formadores de opinião da época.

Sinto arrepios quando olho para a cidade e vejo como determinados setores se movimentam nesses dias sombrios. Como fomentam o ódio, o medo, a divisão, a cisão. Informações e contra-informações circulam atraves dos meios de comunicação cheias de emoção; vejo faixas fixadas em postes, anúncios na tevê: sou contra isso, apoio aquilo. E tenho receio que a cidade entre num frenesi, perca a razão e se envolva numa luta fratricida, colocando pai contra filho, irmão contra irmão, amigo contra amigo, divididos em sérgiodananistas e rpmistas sem, contudo, se perguntarem, de fato, o que está acontecendo e o que há por trás dessa luta que envolve o grande capital internacional e ambientalistas mas que não podem ser, por si só, considerados bode expiatórios para os grandes males que assombram a humanidade.

Parafraseando Juvenal Antena, personagem da novela “Duas caras”, êpa, êpa, êpa, muita calma nessa hora. Necessário se faz recuperar a razão antes que a cidade mergulhe em um caos, antes que nos esqueçamos que partilhamos o mesmo espaço e que a insensatez não nos levará a lugar algum. Que a repetição do grande erro da nossa cultura, qual seja, a escolha de um bode expiatório fundacional no qual paire toda a culpa pela harmonia perdida e a sua consequente eliminação, seja ela biológica ou sociológica, só nos trará dor e padecimento. Noutras palavras, a construção do consenso sempre errará quando partir do princípio de que a união do todos contra um é o fundamento para a conquista da paz social.

Pelo que vejo, os atores dessa peça ainda não estão todos com os seus papeis definidos, nem o enredo inteiramente escrito. Só uma coisa está a priori definida: o gran finale. E ele cheira a aniquilamento. E o maior erro que a cidade pode cometer é escolher um bode expiatório, seja ele Sérgio Dani ou a RPM/Kinross, para descarregar nesse bode todo o seu ódio, ganância ou temor.
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