O cara é muito mais que um mero agitador cultural e pode ser considerado um verdadeiro guerreiro do rock´n´roll. Ao longo de duas décadas à frente do festival anual Rock Solidário, que acontece em João Pinheiro (MG), já conseguiu arrecadar pilhas de alimentos não perecíveis, destinadas a várias instituições sociais da cidade. Desta forma, consegue elevar o rock produzido no Noroeste de Minas Gerais a um patamar superior, de protagonista direto no combate à fome, sombria realidade que ainda assola milhões de brasileiros e brasileiras. Nesta entrevista exclusiva, concedida ao jornalista punk rocker Sandro Neiva, ele conta de onde surgiu a ideia de organizar o festival, fala sobre o projeto do Clube do Rock, explica como o rock´n´roll e o karatê caminham lado a lado em sua vida, revela o difícil processo de reestruturação emocional após a perda de sua filha Camila em 2013 e fala ainda sobre o fortalecimento da cena rock do Noroeste do estado. Com vocês, o rocker Vagner Ferreira de Lima, mais conhecido como VAGNER PRETO.
SANDRO NEIVA – Conte como foi sua infância.
VAGNER PRETO – Cara, nasci em Paracatu no ano de1968, mas até os 12 anos eu nunca tive endereço. Isso porque eu era carvoeiro. Então meu pai girava essa região de Paracatu, João Pinheiro, Lagoa Grande e praticamente todo o Noroeste de Minas. Então eu só fui com conhecer o que era energia elétrica, banho quente, televisão e tudo mais somente em 1980, aos 12 anos, quando fui para João Pinheiro. Era uma vida muito sofrida para uma criança. Se fosse fazenda seria outra coisa porque fazenda é muito bom, o duro é que era carvoeira, não tinha casa, não tinha fruta não tinha nada. Meu pai chegava pra destruir a natureza, que Deus demorou anos e anos para criar né, e eu cresci naquele ambiente com água de cisterna, mas logo a gente fazia uma horta, plantava uns maxixes, pro pessoal tomar umas cachaças, né. Meu pai gostava de beber e a gente criava umas galinhas e às vezes comia um tatu. Então meu pai se desligou da família e fiquei sem uma estrutura familiar. Havia minha mãe, que cobrava para que a gente estudasse, mas estudei muito pouco.
SANDRO NEIVA – Quando e como o rock apareceu em sua vida?
VAGNER PRETO – Eu comecei a me interessar por rock no final do ano de 1983, havia acabado de completar 15 anos, foi quando eu comprei duas fitas K-7, naquela época as fitas já vinham gravadas e eram lançamentos oficiais feitos pelas gravadoras, com capinha original igual os LPs e tal. Eu já morava em João Pinheiro e tinha um brother chamado Rogério Cobra e ele trazia muito material de São Paulo. Então comprei uma fita coletânea do Elvis Presley e outra fita coletânea do Creedence Clearwater Revival, daí fui tomando gosto e adquirindo mais sons. Em 1984 eu era da sala de um maluco chamado Tuti, que já tinha muito material, daí ele gravou para mim tudo misturado em algumas fitas, o primeiro disco solo do Ozzy, Iron Maiden, Judas Priest e Quiet Riot. Aí eu fui engrenando, saca?
SANDRO NEIVA – E a diversão?
VAGNER PRETO – Eu já tinha o rock´n´roll, masno mais, era só trabalhar desde cedo. Eu nunca soube o que é soltar pipa, nunca brinquei com bolinha de gude, soltar peão, nem pensar! Por quê? Porque não sobrava tempo. Ia para a escola, trabalhava em oficina e aos finais de semana ainda vendia picolé. Aos 19 anos já estava casado, tive duas filhas e passei a ter essa responsabilidade do trabalho, então não havia tempo para diversão, foi foda!
SANDRO NEIVA – Quais foram os primeiros shows de rock que assistiu na vida?
VAGNER PRETO – O primeiro show que assisti em minha vida foi do Overdose. Creio que foi em 1988. Foi a turnê do Bestial Devastation, Split-LP de 85, que gravaram com o Sepultura. Porrada, cara! Depois assisti a um show da banda punk paulistana Cólera, lá no Gama, com abertura do Lupercais e Alarme. Foi aí que começou a minha saga em Brasília, acompanhando e registrando todos os shows. Outro evento muito marcante para mim foi aquele com os shows do Necrofilia e Oráculo, bandas de Paracatu tocando em João Pinheiro. Isso foi em 1993, show organizado pelo saudoso Toninho Tavares, isso tá tudo contado em seu livro né, Sandrinho!
SANDRO NEIVA – Foi nessa época que você aprendeu Karatê?
VAGNER PRETO – Na verdade minha história com o Karatê começou antes ainda do rock. Comecei a treinar Karatê em março de 1982, com 13 anos e foi engraçado porque o lote onde funcionava a academia estava todo sujo de capim, o capim estava quase da altura do telhado de tão alto. O dono da academia, então, virou pra mim e disse pra que eu capinasse o lote e ele depois me pagaria. Eu fiquei torcendo para que ele não me pagasse eu pudesse ter a chance de treinar ali. Meu irmão já era faixa-vermelha, mas não me ensinava. Sorte minha que o cara nunca me pagou. Então, o divertimento da minha adolescência era ouvir rock e treinar Karatê. E são duas coisas que estão presentes em minha vida até hoje. No dia 29 de setembro de 82 eu ganhei o meu primeiro Campeonato de Karatê Regional do Alto do Paranaíba, na cidade de Patos de Minas. Ganhei disputando dez lutas. Conquistei o troféu de primeiro lugar no campeonato, ganhei também em Paracatu e treinei até 1994. Disputei o campeonato mineiro de Karatê em BH, em Uberlândia. Quando fui morar em Brasília acabei deixando de lado. Mas após o falecimento de minha filhinha Camila eu resolvi retornar ao Karatê porque nesse período fiquei muito depressivo e com sérios problemas relacionados ao alcoolismo. Então percebi que somente pelo esporte eu conseguiria me reerguer. Muitos recorrem à religião para buscar se reerguerem, eu respeito, mas não quis assim pra mim. Pensei, meu caminho é o esporte, tentei musculação, mas não dei conta, mas quando voltei pro Karatê a vida melhorou pra caralho, entendeu? Então, o rock me ajuda muito, o Karatê me ajuda muito, enquanto estou praticando esporte minha mente está boa, em equilíbrio!
SANDRO NEIVA – Conte um pouco sobre sua vida em Brasília (DF).
VAGNER PRETO – Na Semana Santa de 1995 eu me mudei para Brasília e lá permaneci por 23 anos. Em 1998 eu montei uma oficina, que durou até 2003, depois em 2007 montei outra oficina, que durou até 2013. Teve uma época que o Felipe CDC (Death Slam, Terror Revolucionário) lançou um CD coletânea com várias bandas, chamada Atitude. Eu acompanhei uma série de shows de lançamento daquele CD, registrando fotos com todas as bandas. Foi aí que aprendi a admirar uma banda do Jardim Ingá chamada Sem Destino, assim como o seu líder, o grande Marcelinho Rocha, que é uma pessoa maravilhosa, foi uma época ímpar! Minha maior escola musical foi Brasília, cara! Apesar de não tocar nenhum instrumento ou cantar, aprendi muito com o rock em Brasília, porque vi bandas de todos os estilos.
SANDRO NEIVA – Quando você começou a se interessar por registros fotográficos?
VAGNER PRETO – Foi por volta de 1990 com aquelas maquininhas descartáveis Kodak. Depois tive Yashica, Nikon, sempre registrando eventos. A banda punk Alarme, do Gama tem um EP chamado Olhos de Solidão, em que o encarte tem juma foto muito legal minha com o Válbert empunhando a guitarra como se fosse uma metralhadora. No fanzine Metal Blood, do Roldão, já saíram várias fotos minhas. Fotografei as bandas do underground do Distrito Federal de todos os estilos. Uma vez viajei para São Paulo para assistir a um festival chamado Setembro Negro, em que fotografei bandas do Pará, da Paraíba, e essas fotos rodaram o país! Korzus, Flashover, o Krisiun em Brasília, foi muita coisa, cara, fiz muito material bom! Saiu uma foto minha no Correio Braziliense, divulgando a banda Taurus, do Rio de Janeiro. Fotografei muita banda gringa que tocou no DF como Sodom, Destruction, Nuclear Assaut, Obituary, Deicide, Rattus, da Finlândia…
SANDRO NEIVA – Inclusive nós nos encontramos nesse show do Rattus, da Finlândia. Foi no Gama, em 2007, tá ligado?
VAGNER PRETO – Exatamente, lembro sim! Foi no Teatro Galpaãozinho, do Gama, cheio de punks! Você estava produzindo um DVD pela Pervitin Filmes, eu até apareço nas filmagens!
SANDRO NEIVA – Quando e como foi que começou a organizar shows de rock em João Pinheiro?
VAGNER PRETO – Cara a ideia surgiu quando,no final de 2003, eu fui a Paracatu assistir a um evento de rock. Nome do evento: Liberdade Solidária, que foi organizado pelo Carequinha e todos aqueles malucos adoráveis que o ajudaram. Chamei logo todo o pessoal do rock de João Pinheiro para ir ao evento. Muitos não puderam ir mas eu dei meu jeito e apareci por lá, o show foi no SESC. Foi fantástico ver aquela pilha de alimentos doadas de coração pelos rockers que alimentariam um monte de famílias em situação de carência, acho que foi tudo para o Asilo São Vicente. Sensacional! Na volta para casa, dentro do ônibus, eu coloquei na cabeça: ´cara, vou criar uma parada dessa!’. Contei a ideia para minhas filhas Camila e Janis, respectivamente com 10 e 11 anos de idade na época, e elas empolgaram, cara! Em Brasília, eu já as havia levado em festivais grandes como o Porão do Rock e o Ferrock e vários outros shows. Lembro que uma vez as levei para uma série de shows no Teatro Garagem, da 912 Sul, no Plano Piloto. Elas já haviam visto show da banda Valhalla, formada apenas por garotas. Talvez tenha sido a inspiração inicial para a Camila e Janis formarem as Ramonas, anos depois. Elas Já haviam visto o Slug e uma porrada de bandas. Daí elas ficaram muito empolgadas e vários rockers foram dando as caras. Daí surgiram as ideias para a realização do Rock Solidário, em que arrecadaríamos alimentos e doaríamos para aqueles que mais necessitam, como aprendi em Paracatu. No ano seguinte, em abril de 2004, já estava acontecendo o primeiro Rock Solidário dentro de João Pinheiro, abrindo um espaço até então inexistente para as bandas da região. Em 2024 já vamos para a oitava edição, então foi uma parada que deu certo, saca? O intercâmbio entre os rockers de João Pinheiro e Paracatu foi maravilhoso naquela época. Marcionílio, Maurição, Pelado, Humberto Tazo, Jeferson, Carolzinha e vários outros sempre estavam curtindo e tocando em João Pinheiro. Com a cena se fortalecendo, surgiram na sequência as ideias iniciais para a formação do Clube do Rock.
SANDRO NEIVA – Fale um pouco sobre o projeto do Clube do Rock, em João Pinheiro.
VAGNER PRETO – O Clube do Rock surgiu em 2003 e em 2004 já acontecia o primeiro Rock Solidário. Eu estava com uma visão política influenciada pelos tempos em Brasília assistindo as bandas da cena de punk e hardcore. Ao invés de reclamar dos políticos e da prefeitura em mesa de boteco resolvemos lutar pelos nossos direitos de cidadão. Poucos acreditaram, poucos deram força, mas enfim, deu certo. Passei a frequentar as reuniões na Câmara Municipal dos Vereadores e a coisa foi engrenando. Foi a primeira fase do Clube.
Quando voltei mais uma vez para João Pinheiro em 2018, retomei, junto com algumas pessoas, o projeto do Clube do Rock, inclusive dentro do projeto há um estatuto que inclui o Karatê. Já se vão seis anos que trabalho com o Karatê como uma fatia da arrecadação, ou seja, uma parte dos alunos ganha bolsa pelo clube e a outra parte me paga uma quantia. É uma parada que me dá muito prazer e inclusive me ajuda muito em relação à minha saúde mental e estados depressivos, entende? Hoje tenho minha academia de Karatê, onde funciona também o Clube do Rock, que leva o nome da minha filha, Academia Clube do Rock Camila Fernanda. Trabalho com 16 alunos atualmente, sendo a mais graduada a minha filha, que é faixa-roxa, tem um senhor que é faixa-branca, com 42 anos e minha aluna mais nova é sobrinha desse senhor e tem apenas 5 anos. Apesar da pouca estrutura do lugar, tento fazer as coisas com muito carinho e humildade. Hoje, o Clube do Rock está em negociação com a Prefeitura Municipal, para que consigamos a doação de um lote. Inclusive, esse projeto já foi aprovado na Câmara de Vereadores. Inclusive, quero aqui agradecer o importantíssimo apoio do vereador Chiquinho Lanterneiro, que é um cara que apoia nossa cena rock e a cultura de forma geral. O local já foi demarcado e em 2024 pretendemos já estar com tudo legalizado e garantido. Esse novo espaço será essencial para dar mais conforto aos alunos do Karatê. Também pretendemos montar um estúdio onde as bandas locais possam ensaiar e gravar. A ideia é construir um palco, para quando rolar eventos a gente ter o nosso próprio palco. É um projeto ousado, mas muito singelo, onde pretendemos também disponibilizar uma pequena área de lazer para as crianças, que será o Espaço Kids Rock´n´Roll. Esse estúdio, cara, seria um projeto vislumbrando o futuro do rock em João Pinheiro. Sem dúvida, seria a base para se ter uma continuidade daquilo que mais amamos, que é o Rock´n´Roll. Quem tem banda de rock sabe que um dos maiores desafios é conseguir um local para ensaiar, onde se pode fazer som em paz, livre de julgamentos morais dos pais, da vizinhança ou da polícia. Hoje, afirmo com alegria, que o apoio dos rockers é total. Todo mundo comparece aos shows e a cena do rock do Noroeste de Minas caminha unida!
SANDRO NEIVA – Organizar e produzir shows de rock é sempre uma atividade arriscada. Muita gente que se diz da cena acaba não comparecendo. Como você enxerga esse fato e qual o recado que você dá para os rockers em relação a comparecimento aos shows?
VAGNER PRETO – Estar à frente da organização de um evento de rock é muito complicado. No início foi muito difícil pra mim, porque cheguei na cidade de João Pinheiro com uma visão política de cobrança por eventos. E não tinha apoio de lado algum, mas com muita garra os eventos foram saindo. Mas o maior desafio era e ainda é fazer com que as pessoas do movimento compareçam aos eventos. O que mais se vê por aí é aquela coisa, todo mundo reclama que na cidade não tem show, não tem isso, não tem aquilo. Aí quando você faz um show, muito filho-da-puta nem aparece, entende? Isso é desanimador. Então o recado que dou para esse tipo de rocker que não vai a shows é que pensem direito. Se você gosta, apoie, compareça, dê as caras, porra! É lógico que cada um tem suas prioridades, isso não se discute, mas eu, falando de mim, eu não abro mão de um bom show de rock ao vivo, entende? Ver uma banda que você curte tocando ao vivo em sua cidade, isso deveria encher os rockers de orgulho, cara! Tenho sempre a preocupação de colocar para tocar bandas de diferentes estilos para atrair todos os gostos, saca? Se o cara não comparece aos shows, penso que ele não tem o direito de reclamar da falta de entretenimento e diversão em sua cidade.
SANDRO NEIVA – Como você enxerga o intercâmbio e parceria entre o pessoal da cena rock de Paracatu, João Pinheiro e Noroeste de Minas, de forma geral?
VAGNER PRETO – Acho isso muito foda, muito positivo em todos os aspectos, cara! São duas cidades que têm muitos bons músicos, apesar de que os músicos de João Pinheiro são um pouco mais tímidos, mais modestos, enquanto a galera de Paracatu sempre fez rock autoral, desde a época do Necrofilia e Oráculo, né cara, nos anos 90. Creio que tem que ser como os nordestinos, que tiram som até dum pingo d´água. Mas a cena do Noroeste de Minas ainda é muito centrada em Paracatu e João Pinheiro. Meu sonho é um dia conseguir ter uma aproximação mais forte com os rockers de Unaí, Brazlândia de Minas, Vazante, Guarda-Mor, e até Três Marias e Patos de Minas, que já estão numa região mais central do estado. Uma união maior, um intercâmbio maior com outras cidades fortaleceria a cena ainda mais, cara! Porque o rock é positivo cara, e proporciona essa união. Isso pode render frutos, parcerias musicais maravilhosas. Em João Pinheiro hoje só temos uma banda fazendo som autoral e precisamos de mais porque o que mais tem é banda cover pra todo lado. Outra coisa que ajudou a levantar a cena foi o lançamento de seu livro Paracatu Rock City – Uma História de Rock´n´Roll no Noroeste de Minas. Todas as nossas histórias estão lá e elevou o rock de nossa região a um patamar superior.
SANDRO NEIVA – O que o rock significa em sua vida?
VAGNER PRETO – Desde quando eu conheci o rock no princípio dos anos 80 o rock teve um significado imenso em minha vida. Ir a shows, comprar discos, vídeos, assistir a MTV, ao programa Musikaos, do Gastão Moreira, escutar pelo rádio o programa Black Sunday, do Arllen Torres, isso era tudo, cara! O rock me ajuda muito cara, muito mesmo! Tenho orgulho de ter assistido muita coisa, bandas gringas, banda de Brasília, de São Paulo, as bandas de hardcore do DF eu vi todas ao vivo, as bandas de Thrash metal e Death, isso é muito gratificante porque eu me amarro pra caralho, saca? Ter criado o Clube do Rock com essa base, essa bagagem musical dá muito mais peso, entende? Hoje o rock me ajuda até mesmo a suportar a dor da distância física entre mim e a Camila, que já partiu desse mundo. Então o rock ocupa minha mente de forma saudável. No Karatê a gente costuma dizer que mente ocupada é mente sã, então o rock é positivo, entende?
SANDRO NEIVA – Deixo o espaço aberto para uma mensagem aos rockers.
VAGNER PRETO – A informação é tudo, cara! Precisamos estar bem informados sempre, filtrando o que é bom, descartando o que julgamos que não nos serve. É preciso não cair nas garras do comodismo e da letargia. Estar presente num show de rock em sua cidade é mais legal do que ficar ostentando em rede social. Quando tiver a oportunidade de ir a um show, vá, saia do conforto do sofá e compareça, ao invés de ficar fazendo porra nenhuma e reclamando da falta de diversão na cidade. Isso fortalece a cena! É isso aí! Feliz 2024 para todos e muito rock!