A mina Morro do Ouro, em Paracatu – MG, é única pelo gigantismo: é a maior mina de ouro a céu aberto no mundo e a maior em produção de ouro no Brasil. Estas características causam admiração àqueles que são ofuscados pelo vil metal, porque esta mina é também gigante nos danos provocados à natureza e aos seres humanos.
Ela começou a operar em 1987, ao lado da cidade de Paracatu, e seu convívio com a cidade é uma típica relação de sujeição/dominação, um caso de estupro inevitável. Inúmeros conflitos se desenvolveram ao longo dos anos, especialmente a partir da expansão da produção ocorrida entre 2005-2010, com expulsão de comunidades quilombolas, ataques a garimpeiros tradicionais, expulsão de moradores de bairros vizinhos à zona de lavra, perturbações aos moradores da cidade com poeira e explosões e vários conflitos com proprietários e posseiros na zona rural.
Aqui, vamos falar apenas da questão das barragens de rejeito, que são gigantes não apenas pelo volume de material estocado, mas também por serem os maiores depósitos de arsênio de que se tem notícia. O ouro explorado em Paracatu está contido em rocha rica em arsênio, um semimetal tóxico, conhecido como o “rei dos venenos” – não tem cheiro e nem sabor, mas é letal em pequenas doses e, em doses mínimas, provoca uma série de doenças, que vão desde lesões de pele a vários tipos de câncer, má formação congênita, doenças neurológicas, diabetes e quase todas que se pode imaginar.
O arsênio, como os demais elementos químicos da Terra, está presente em todos os ambientes, mas nem sempre é bioassimilável. Nas rochas da mina Morro do Ouro ele se apresenta como sulfeto de arsênio e ferro (arsenopirita), e nesta condição os organismos vivos não o assimilam. Ele passa a ser tóxico quando está na forma de óxido de arsênio, e é isto o que faz o processo de beneficiamento: o minério é atacado por cianeto (que também é um produto altamente tóxico e letal), transformando o sulfeto de arsênio em trióxido e pentóxido de arsênio. Esta reação química é necessária para destruir o mineral arsenopirita e liberar o ouro que está incluso na sua rede cristalina. Daí o ouro é recuperado em um circuito de carvão ativado.
Quanto de ouro e de arsênio existem no minério da Mina Morro do Ouro?
De acordo com relatório técnico da mina, o teor médio de ouro é de 0,4 g/tonelada e o de arsênio é de aproximadamente 1,1 kg/tonelada de minério. Apresentando estes dados de uma forma mais compreensiva, para se extrair 1 g (um grama) de ouro são necessárias 2,5 t (duas toneladas e meia) de minério. Estas mesmas 2,5 t de minério teriam 2,7 kg de arsênio. A cada ano, portanto, levando-se em conta que a mineradora movimenta 61 milhões de toneladas de minério, ela libera para o meio ambiente mais de 67.000 toneladas de arsênio em sua forma tóxica. A mina opera desde 1987, e só nos últimos dez anos 670 mil toneladas de arsênio devem ter sido liberadas no meio ambiente, a maior parte estocada nas barragens de rejeito.
Quando se questiona a mineradora sobre o arsênio, ela responde hipocritamente que o arsênio é natural nas rochas de Paracatu; mas não fala que nas rochas ele é inofensivo, e que nos efluentes do beneficiamento estocados na barragem ele é um veneno. Recentemente, deparamos com mais uma afirmação enganosa da mineradora: a de que o arsênio é estocado em tanques específicos, os quais são posteriormente enterrados e lacrados. É certo que um percentual de arsênio possa ser recuperado no beneficiamento e estocado, menos que 30%; mas também é certo grande parte da estocagem é na barragem, onde o seu grau de biodisponibilidade atinte 67%, de acordo com estudo financiado pela mineradora. Entretanto, o processo de renovação de licenciamento da mina PA COPAM 099/1985/076/2016 não cita a existência de tanque específico para arsênio, mas somente para cianeto.
Se o arsênio está estocado na barragem, isto é problema?
As barragens de rejeito da mina Morro do Ouro não são impermeabilizadas no piso e, além disso, dela vertem drenos de água, em circuito aberto. Lembremos que além do arsênio, o estoque de rejeito contém produtos químicos tóxicos utilizados no beneficiamento mineral, além de metais pesados presentes no minério: cobre, chumbo, manganês, cádmio e prata, todos eles apontados como agentes tóxicos. Isto é uma séria violação ao princípio de precaução, instituído no direito ambiental brasileiro.
No processo de licenciamento das barragens a questão do rejeito tóxico sequer foi colocada, e a mineradora informa que as rochas do piso das barragens são impermeáveis. Em hidrologia, existem rochas permeáveis e de baixa permeabilidade, mas rochas absolutamente impermeáveis não existem, ainda mais quando se trata de rochas não cristalinas, como é o caso daquelas encontradas no local. Rochas de baixa permeabilidade, sujeitas a pressões de material com alto conteúdo de água e ainda mais contendo produtos químicos solventes, como aqueles usados no tratamento de minérios, alteram em muitos graus a sua permeabilidade e passam a se comportar como corpos permeáveis.
Tal é o que ocorreu na barragem do Santo Antônio, com 31 anos de operação e um estoque de aproximadamente 400 milhões m3 de rejeito, elevados a 110 m de altura. (A barragem do Fundão, em Mariana, tinha 56 milhões de m3, e a do Córrego Feijão, em Brumadinho, tinha 12 milhões de m3.). Deixando de lado o seu potencial de risco de rompimento, esta barragem lança a sua drenagem ácida a jusante da mina, atingindo as águas subterrâneas e superficiais da bacia hidrográfica do ribeirão Santa Rita, onde se encontram uma comunidade de pequenos proprietários e o povoado Lagoa de Santo Antônio.
A constatação de contaminação das águas superficiais e sedimentos dos córregos foi feita em 2012, através de um levantamento realizado pelo CETEM. Em 2015, publicamos no Congresso Latino-Americano de Risco os resultados de um levantamento que incluiu amostragem de águas subterrâneas, águas e sedimentos dos córregos e também o exame de arsênio presente na urina de uma parte da população residente. Este levantamento revela a gravidade, persistência e progressão da contaminação ambiental das águas superficiais e subterrâneas: todas as amostras colhidas superam os limites estabelecidos na legislação. A amostragem da população aponta cerca de 70% de moradores que apresentam concentração de arsênio na urina acima do valor de referência, o que pode ser explicado pela ingestão de água e alimentos contaminados. Ali, a concentração média supera largamente aquela observada no Quadrilátero Ferrífero, onde a mineração de ouro em rocha com arsenopirita iniciou-se há cerca de 180 anos.
Uma Ação Civil Pública que deu ingresso em 2009 solicitando um estudo epidemiológico em Paracatu foi recentemente declarada extinta, sem ter atendido o seu propósito. Acordo feito com o Ministério Público Estadual, na forma de Termo de Ajuste de Conduta, que obrigava a mineradora a divulgar os dados de monitoramento ambiental, jamais foi atendido. Todas as denúncias e reclamações contra a mineradora caem no vazio da omissão das autoridades públicas.
Casos de contaminação de pessoas já foram relatados e expostos na mídia nacional e estrangeira. Embora estes resultados tenham sido apresentados na forma de denúncia pública e também tenham sido encaminhados a diversas autoridades, até hoje nenhuma providência foi tomada, nem sequer para investigar a sua veracidade.
Pela Constituição Federal e as leis subsequentes, o Estado tem a obrigação de proteger o ambiente e garantir às pessoas um ambiente saudável. Porém, com baixa capacidade de verbalização dos seus problemas e reivindicações, sem lideranças efetivas, baixa participação popular e a crença bastante disseminada de que é impossível lutar contra a grande empresa, a resistência dos grupos atingidos de Paracatu é, assim, quase melancólica. O poder da mineradora estabeleceu uma relação de mando e obediência que foi internalizado pelas autoridades públicas, pela sociedade em geral e até mesmo por alguns que resistiam.
Márcio Silva Santos
* Professor / Geólogo
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