Treze de maio de 2018. 130 anos da assinatura da Lei Áurea que aboliu a escravidão negra no Brasil. Sem dúvida, um dos mais tristes momentos da história do Brasil. Eu cá me ponho a meditar, pela mania da compreensão, e pergunto-me: Devo chorar ou sorrir em face do ato jurídico da abolição da escravidão no Brasil?
A história nos conta que a escravidão negra no mundo foi uma das maiores barbaridades cometidas pelo homem contra si mesmo. Os então “senhores escravocratas”, sustentavam-se na ideologia de que a raça negra era inferior, tanto que chegaram a pensar que um filho de um branco com um negro fosse estéril assim como as mulas e desse pensamento surgiu a expressão “mulato”. Acreditava-se que os negros não tinham almas, eram seres inanimados, sem vida e sem vontade própria. Daí, por não terem almas e, por conseguinte, serem animais irracionais, eram submetidos a todos os tipos de torturas e humilhações inimagináveis.
Trazidos da África em porões dos navios negreiros, em péssimas condições de transporte, muitos morriam durante a viagem e seus corpos eram jogados nas águas do mar. Chegando ao Brasil, eram comprados por fazendeiros e senhores de engenho que os tratavam de forma cruel e desumana. Logo eram encaminhados para os canaviais e a todo tipo de trabalho degradante.
Posto que eram tidos como mercadorias, os escravos eram avaliados, única e exclusivamente, pelo seu porte físico. Não são poucas as escrituras públicas contidas nos livros de venda de escravos dos cartórios que testificam que os escravos eram avaliados pela sua dentição à semelhança do que se faz até aos dias de hoje com os cavalos. As mulheres escravas não eram donas dos seus próprios corpos. Eram frequentemente estupradas pelos “senhores de engenho”. Os escravos viviam em senzalas, onde ficavam presos quando não estavam trabalhando, e eram responsáveis por todo o trabalho braçal realizado nas fazendas. Trabalhavam de sol a sol e não tinham quase tempo para descansar. A vida “útil” de um escravo adulto não passava de dez anos por causa da dureza dos trabalhos forçados e da precariedade da alimentação. Seus filhos eram seus substitutos. O mínimo deslize de um escravo era motivo para as mais horrendas punições. Para fugir deste sofrimento alguns escravos se suicidavam. Outros matavam seus feitores e outros, ainda, fugiam para os quilombos.
Conta-nos a tradição que muitos escravos, com saudades da sua terra natal e das suas famílias, o que chamavam de “banzo”, embrenhavam-se mar à dentro, na costa brasileira, nadando rumo à África na esperança de voltarem às suas origens. Acabavam morrendo afogados.
Os negros não tinham direito de expressão e nem de religião. Sua cultura e costumes eram desprezados. Triste eloquência da tristeza silenciosa! Contudo, vale ressaltar que este era o regime jurídico da época. Todo este horrendo período da nossa história era agasalhado pelas Leis de então. Não havia crime em escravizar, humilhar, mutilar, estuprar, matar e praticar quaisquer barbaridades com os escravos. Enfim, eram meros animais, desprovidos de almas. Assim, perdurou a escravidão no Brasil por quase quatro séculos. Era ela a mola mestra do desenvolvimento do país.
Mas, aquela situação tinha que mudar. Assim, poetas, livres pensadores e abolicionistas trabalhavam, às vezes ocultamente nos Templos das Lojas Maçônicas, em prol da abolição da escravatura no país. E o movimento abolicionista foi crescendo. Pressões internacionais também foram importantes na luta contra a desumana situação dos negros no país. A Inglaterra forçou o Brasil a não mais comprar escravos, pois ele era o maior comprador da época. Assim, aquele país europeu aprovou a Lei chamada Bill Aberdeen que autorizava a esquadra britânica a apreender os navios negreiros e a julgar seus tripulantes. Mesmo protestando, o Brasil não conseguiu ceder às pressões e, em 1850, a Assembleia Geral editou a Lei n.º 581, em 04 de setembro, extinguindo o tráfico de negros para o Brasil.
Mas, a luta dos abolicionistas não tinha terminado. E os escravos que permaneciam no Brasil? Assim, foi editada a Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1.871, chamada Lei do Ventre Livre, em que “libertava” os filhos dos escravos. Em 28 de setembro de 1.885, foi editada a Lei n.º 3.270, da lavra do imortal Rui Barbosa, chamada Lei dos Sexagenários que libertou os escravos com mais de 60 anos de idade. Finalmente, não mais aguentando a pressão internacional, a princesa Izabel de Bragança, filha de D. Pedro II, edita a Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1.888, chamada Lei Áurea, extirpando do regime jurídico brasileiro a maior vergonha da nossa história, a escravidão.
Cito o texto de Herbert Wendt em “Tudo começou em Babel”, São Paulo, p. 187188. “O cronista português Azurava descreve uma cena de época das primeiras viagens das descobertas. O que disse, comove: Os prisioneiros foram trazidos para a terra. Eram pretos e bem feios de rosto e de figura, dando a impressão de pertencerem a um mundo inferior. Mas quem teria coração tão empedernido que não sentisse compaixão por eles? Alguns entre eles baixavam o rosto banhado de lágrimas, outros dirigiam o olhar ao céu e lamentavam-se. Outros, ainda, batiam com os punhos fechados no próprio rosto e em seguida lançavam-se ao chão. Alguns entoavam cânticos de lamentos e, embora não entendêssemos as palavras, os sons eram tão doentios que comoviam. O sofrimento deles era aumentado quando capatazes desmanchavam as famílias, separavam crianças de seus pais, marido da mulher, sem consideração, nem piedade. Mal terminava a primeira separação, porém, os filhos corriam junto de seus pais e as mães abraçavam os filhos desesperadamente. Estendiam-se no chão e nem gemiam quando as chibatas lanhavam os seus corpos despidos – suportavam tudo na esperança de que lhes permitissem conservar os filhos, mas em vão.”
Assim, caro leitor, volto à pergunta inicial: Devo chorar ou sorrir em face do ato jurídico da abolição da escravidão no Brasil? Depois de muito refletir e apesar da ambiguidade da resposta, não posso deixar de responder que devo chorar e também sorrir. Chorar pelos milhões de irmãos que perderam as suas vidas nas senzalas, nos pelourinhos, nos canaviais, sempre anônimos, tidos como sem almas, inanimados e resumidos a mercadorias. Por eles choro, não há consolo na minha alma. Lado outro, devo sorrir por que, por razões que a própria razão não explica, a humanidade evoluiu. Um raio de luz caiu sobre os homens de bem de outrora que forçaram o ato da abolição. Não um ato de bondade do império, mas fruto da luta de homens destemidos como os maçons Rui Barbosa, o maior de todos os brasileiros, e o grande poeta Castro Alves do qual tomo emprestada a sua pena para transcrever uma porção da sua obra prima “O Navio Negreiro” que nos remete à tristeza da página virada de nossa angustiante história:
“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas co`a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?… Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades varrei os mares, tufão! Quem são estes desgraçados que não encontram em vós mais que o rir calmo da turba que excita a fúria do Algoz? Quem são? Se a estrela se cala, se a vaga à pressa resvala como cúmplice fugaz, perante a noite confusa… Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!… São os filhos do deserto, onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto a tribo dos homens nus… São os guerreiros ousados que com os tigres mosqueados combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, sem luz, sem ar, sem razão… São mulheres desgraçadas, como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, de longe…bem longe vêm… trazendo com tíbios passos, filhos e algemas nos braços, N`alma – lágrimas e fel… Como Agar sofrendo tanto, que nem o leite de pranto têm que dar para Ismael.”
Foto: Glicéria da Conceição Ferreira (1870) – Divulgação/Joaquim Feliciano Alves Carneiro (s.d. – 1887) e Gaspar Antonio da Silva Guimarães (s.d. – 1874)