Ensina-nos a orar

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Hoje sou um cristão convertido a Jesus de Nazaré, o Cristo da Bíblia, dos apóstolos e daqueles que deixaram o conforto das cidades para experimentar Deus no deserto. Mas, até aqui onde estou, foram muitos os caminhos que trilhei e diversas as tentativas de soerguimento. Tropecei. Caí. Levantei. Não foi um percurso fácil, reconheço, desde quando fui apresentado a
Jesus Cristo por minha irmã Gitana, em fins da década de 1970. Nas reflexões que se seguem, as primeiras depois de minha conversão – conversão esta que resultou no abandono da Igreja Romana e na consequente adesão à fé reformada –,
conto um pouco desta trajetória, seguindo a trilha da oração do Senhor, que nos liberta e conforta.
     
Imbuído por um forte desejo de seguir a Jesus ingressei, em fins da década de 1980, na Ordem dos Pregadores. Os Dominicanos, como também são chamados, não têm uma espiritualidade definida, como têm os franciscanos, nem muito menos um método,
como possuem os jesuítas. Isto dificulta sobremaneira a vida dos iniciados, uma vez que cada um tem de buscar, por si mesmo, uma experiência espiritual autêntica, construída a partir de uma vida de oração e de intimidade com Deus.

Isso porque, desde cedo, compreendi que: "A oração não apenas dá presença à nossa presença de Deus, mas também autentica nosso existir humano. Ou seja: um ser humano se torna tanto mais humano quanto mais ele contempla o Criador. O oposto também é verdadeiro: um ser humano se torna tanto mais desumano quanto mais deliberadamente ele se ausenta do Criador.

A melhor maneira de sermos gente é mediante a contemplação de Deus. E aqui há uma ironia: não se aprende a ser homem com o
homem, mas com Deus. A imagem e semelhança de Deus que se encontram perdidas no homem só podem ser encontradas no Criador."

Muito embora tivesse essa compreensão intelectual, a vivência e entrega total à oração sempre me pareceram algo de difícil acesso. Talvez aí resida o meu interesse pela literatura dos pais do deserto, aqueles primeiros cristãos que, enfadados com a pseudotranquilidade que a igreja cristã vivia depois da transformação de igreja perseguida para religião oficial do Império Romano, foram buscar no deserto aquela inquietude vivenciada pela comunidade primitiva.

Havia, na comunidade onde eu morava em Uberaba, Minas Gerais, um frade ancião que vivera mais de trinta anos entre a cidade do Cairo, capital do Egito,  partes da Síria e de todo o Oriente Médio.
Frei Reginaldo era, por natureza, um contemplativo, além de renomado intelectual, versado nas mais diferentes línguas, antigas e modernas. Foi ele quem primeiro me falou da espiritualidade desses primeiros cristãos do deserto, e da pureza e radicalidade com que encaravam a experiência de seguir a Jesus Cristo.

"Os padres do deserto foram pioneiros, não tinham nada a dar seguimento a não ser o exemplo de alguns profetas, como João
Batista, Elias, Eliseu e os apóstolos, que também serviram de modelo. No mais, adotavam uma vida "angélica" e seguiam os caminhos inexplorados dos espíritos invisíveis. Suas celas eram como a fornalha da Babilônia, na qual, em meio às chamas, encontravam-se com Cristo. 

Eles não almejavam a aprovação de seus contemporâneos, tampouco buscavam provocar qualquer reprovação, porque as opiniões dos outros passaram a não ter importância. Não tinham nenhuma doutrina de liberdade estabelecida, mas de fato tornaram-se livres pagando o preço da liberdade."

Logo no início do noviciado – tempo reservado ao processo de iniciação numa ordem monástica ou religiosa –, um dia procurei o meu padre-mestre, frei Manoel:  "Frei, não consigo parar pra orar; a minha mente é um turbilhão, o meu coração vive numa inquietude sem fim. De modo que, tirando esses momentos em que nos reunimos para a leitura dos salmos e das Sagradas Escrituras, a minha vida espiritual segue num imenso deserto."

Tranquilamente ele sorriu, com aquela calma que lhe era peculiar. Talvez também porque, como mestre de noviços, já tivesse
ouvido aquela pergunta uma centena de vezes. Inquieto, refiz a pergunta, de certa maneira, como fizeram os discípulos de Jesus: "ensina-me a orar" (Lc 11.1).

Ele me falou que não tinha receita pronta, mas me aconselhou, inicialmente, a reservar uma hora diária para o vazio.

"Entre 17:30h e 18h não faça nada. Tranque-se em sua cela, e busque na solidão o encontro consigo mesmo. Se você não enlouquecer, com o passar dos dias a oração irá encontrando lugar dentro do seu coração."

"Posso ler a Bíblia?"

"Não." 

"E o terço, posso rezar?"

"Também não. O que você precisa inicialmente é experimentar a solidão do deserto interior. Não se fixe em pensamentos. Não medite. Deixe que os pensamentos vagueiem pela sua mente como passam as imagens numa película de cinema. Tampouco fique deitado."

"Posso fechar a janela da minha sela?"

"É melhor que ela fique aberta. A gente, para ter um encontro com Deus, não precisa fugir do mundo. Nunca esqueça que tudo é obra dele: estas plantas, os pássaros, eu, você…"

E assim eu fiz.

Mas, não foi nada fácil. Esse encontro comigo mesmo quase me levou à loucura.

Li quase todos os grandes mestres da espiritualidade cristã: João da Cruz, Tereza d'Ávila, Catarina de Sena, Mestre Eckhart, Bernardo de Claraval. De pouco me adiantaram na minha busca interior.

Um dia, como que por acaso, caiu em minhas mãos Relatos de um peregrino russo, obra anônima do século 19. A apresentação do peregrino me impactou de imediato:

Pela graça de Deus, sou homem e cristão; pelas ações, grande pecador; por estado, peregrino sem abrigo, da mais baixa condição, sempre vagando de déu em déu. De meu, tenho às costas uma sacola de pão seco, na minha camisa a santa Bíblia, e eis tudo.

Eu, que pouco tempo antes fora também peregrino e pedinte nas ruas das cidades do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora, Minas Gerais, logo me identifiquei com o peregrino russo.

Fazia algum tempo que havia deixado o Nordeste brasileiro à procura dos frades dominicanos, sobre os quais não tinha a menor informação de onde pudessem estar. Hoje é tão fácil encontrar alguém. Mas, na década de 1980, não havia o google ou algo que
se assemelhe. Então o jeito era sair nordestinamente sem rumo ao encontro do nada, e assim o fiz.

Fortemente marcado pela vida de Francisco de Assis, antes, porém, eu pretendia enfrentar a dura vida de mendicante, dormindo ao léu e pedindo "uma esmolinha pelo amor de Deus". Durante semanas perambulei pelas ruas de Juiz de Fora, misturado a andarilhos e pedintes. Foi uma experiência inesquecível.

"No vigésimo domingo depois da Trindade – prossegue o peregrino –, eu entrei na igreja para rezar durante o ofício; estavam lendo a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na passagem que diz: Orai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como era possível orar sem cessar quando cada um de nós tem de ocupar-se de muitos
trabalhos para o próprio sustento. – É preciso orar sem cessar (1Ts 5.17), orar em todo tempo no Espírito (Ef 6.18), levantando 
mãos santas (1Tm 2.8)."

Não é fácil, mormente no mundo de hoje, alguém viver em constante oração. Vivemos num mundo agitado, dominado pela técnica e pelo mundo do trabalho onde, para muitos, parar para orar é jogar tempo fora. Quantas vezes preferimos ficar quietos diante da TV a ter que ir para a igreja ou mesmo desligar tudo: celular, televisor, computador, e nos entregar de corpo e alma ao Senhor em comovente oração.

Muito embora não seja o único, o caminho da oração talvez seja a senda mais eficaz para esse encontro com o outro, que é Deus. Sem uma intimidade visceral com Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, dificilmente nos abriremos para o outro que é nosso
irmão e com quem dividimos a convivência aqui na Terra.

Precisamos, para ir a esse encontro, ser santos ou religiosos zelosos e observantes? Não necessariamente, até porque, muitas vezes, o apego obstinado a uma observância estrita da religião pode nos levar ao mais cruel farisaísmo. Só precisamos nos
entregar sem reservas. Este Jesus que nos é apresentado pelo Evangelho pouco se importa com o que fomos ou somos. Ele simplesmente nos ama e nos quer salvar a qualquer custo. Isto porque "Aquele que não ama não conhece a Deus, pois
Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele" (1Jo 4.8-9).

Mas, para isto acontecer, necessário é que nos despojemos de toda religiosidade e nos entreguemos ao amor avassalador de Deus.

"Os fariseus haviam distorcido a imagem de Deus, apresentando-o como um remoto contabilista que está constantemente espionando os pecadores (e que um dia nos pegará se nossas contas não estiverem em ordem). 

Os fariseus estavam tão ocupados refinando e desinfetando as fórmulas da religião, eram tão assíduos em estudar aquilo em que acreditavam, que esqueciam a realidade para a qual suas crenças apontavam. Creram durante muito tempo, mas a fé deles estava entorpecida. Esperaram o Messias por tanto tempo que suas expectativas estavam embotadas."

Preocupamos-nos muito em seguir normas, em ter tais e tais comportamentos, em sermos aprovados pelos amigos ou pelos irmãos da igreja e, muitas vezes, nos esquecemos que tudo isso pouco importa para Deus. "É preciso orar sem cessar" (1Ts 5.17),
"orar em todo o tempo no Espírito" (Ef 6.18), "levantando mãos santas" (1Tm 2.8), e tudo o mais virá por acréscimo. Sem maiores
preocupações, mas buscando constantemente nos aproximar mais e mais de Deus por intermédio do seu filho Jesus Cristo, que por nós morreu no madeiro, pagando antecipadamente a conta pelos nossos muitos pecados. Os que já cometemos e os
que ainda iremos cometer. Ainda assim, conscientes de que somos fracos, limitados e pecadores, ele nos amou e nos presenteou com a sua graça, para que pudéssemos participar do seu banquete e gozar de sua eterna companhia.

Essa busca, no entanto, não foi fácil para o peregrino russo e muito menos para mim. Aliás, continuo ainda hoje, quase um quarto de século depois desses acontecimentos, na mesma busca, num balbucio constante: Abba, Pai, ensina-me a orar sem cessar!
      
Tarzan Leão, na
mansarda dos leões.

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